Ao comentar o possível financiamento do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para a construção de um gasoduto na Argentina, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ignorou os impactos ambientais da obra e acendeu sinal de alerta entre especialistas do setor de energia e da área econômica.
A expectativa da Argentina é conseguir financiamento na ordem de US$ 689 milhões para a execução da segunda etapa do gasoduto Presidente Néstor Kirchner, na região de Vaca Muerta, na Patagônia. O local tem a segunda maior reserva de gás de xisto do mundo e é a quarta maior em óleo de xisto.
No entanto, o investimento em um gasoduto que utiliza técnicas de exploração consideradas nocivas ao meio ambiente contradiz a política ambiental e de transição energética que o petista defende desde a campanha eleitoral, comenta Ilan Zugman, ativista climático brasileiro e diretor da 350.org na América Latina.
Para Zugman, o investimento atende muito mais o lobby de empresas e políticos ligados ao setor de combustíveis fósseis do que os interesses nacionais de Brasil e Argentina.
“Investir no gasoduto de Vaca Muerta seria uma vergonha binacional. O governo brasileiro tem se colocado no cenário internacional como parceiro das questões das mudanças climáticas, mas, se essa intenção se confirmar, vai contra toda a narrativa que vem sendo construída nos últimos meses. Escolher investir em gás fóssil em vez de escolher investir em energia renovável é vergonhoso para o Brasil”, comenta.
Zugman destaca que a exploração de gás xisto nem sequer é regulamentada no Brasil e lembra que, em alguns casos, a Justiça Federal brasileira proibiu a exploração do gás em estados como Piauí, Sergipe, Paraná e São Paulo. Na ocasião, o Ministério Público Federal (MPF) apontou potenciais riscos ao meio ambiente, à saúde humana e à atividade econômica regional, o que fez com que a exploração fosse interrompida.
“É uma técnica cara e perigosa, a Argentina só conseguiu desenvolver esse setor depois de fazer muitas parcerias com empresas americanas. Só assim é possível sustentar essa indústria, porque precisa de muito mais dinheiro. Com menos dinheiro do que o investido em Vaca Muerta seria possível ter avanços muito importantes na transição energética”, completa Zugman.
Paula Meyer, professora de economia da energia na Universidade de Brasilia (UnB), explica que a exploração de jazidas de gás natural por meio da fraturação hidráulica do solo é conhecida pelo termo em inglês fracking, e consiste em perfurações no solo e injeções de água e solventes químicos em alta pressão. Essa técnica quebra a rocha de xisto e torna possível a extração do gás.
“É eminentemente invasiva do ponto de vista ambiental. Além de rasgar o lençol freático, pode provocar outras poluições. Por isso, essa forma de extração de gás é tão criticada”, comenta.
Durante o fraturamento hidráulico, substâncias que estão dentro do poço vem à tona, incluindo os solventes utilizados e os resíduos da extração. Isso pode levar à contaminação dos lençóis freáticos e a vazamentos de gases tóxicos na atmosfera, sobretudo o metano, que contribuem para o efeito estufa.
Além disso, a exploração do gás e do óleo de xisto está diretamente ligada a processos que podem levar à perda dos habitats de plantas e animais, declínio das espécies e degradação da terra.
Segundo Alessandro Azzoni, que é economista e especialista em direito ambiental, apesar de Lula ter sinalizado apoio à construção do gasoduto com recurso do BNDES, a aprovação do investimento ainda deve passar pelos crivos administrativos do banco e da legislação brasileira.
“Quando se fala da questão ambiental, a extração de gás de xisto é muito preocupante porque é uma atividade muito perigosa. No entanto, não é tão simples assim liberar esse tipo de investimento. Isso porque, existe uma tese já forte e difundida na Justiça brasileira sobre a responsabilidade objetiva de quem financia obras com riscos ambientais”, explica.
Além disso, o especialista acredita que Lula pode enfrentar dificuldades dentro do próprio governo ao articular a liberação de recursos públicos para financiar o projeto argentino. “Pode ser uma posição controvérsa principalmente no Ministério do Meio Ambiente [MMA], que tem Marina Silva como ministra. Ela tem posicionamento sobre atividades de alto impacto ambiental e, talvez, não queira assumir as responsabilidades [de possíveis danos ambientais]”, completa Azzoni.
Ao R7, o MMA respondeu que não tem conhecimento sobre o projeto e a intenção do BNDES em financiá-lo. “Trata-se de um empreendimento complexo que envolve riscos socioambientais significativos a serem devidamente considerados”, comentou.
Para o economista Newton Marques, do Conselho Regional de Economia do DF (Corecon), as regras da negociação com a Argentina ainda são nebulosas e o governo brasileiro precisa definir quem vai assumir os riscos do investimento.
“Todo investimento tem mil possibilidades e é preciso entender a intenção do governo com esse anúncio de investimento no gasoduto. Parece que o Brasil quer alavancar a Argentina para que ela possa ser uma parceira comercial cada vez mais forte e, com isso, ajudar no avanço do Mercosul. Pode ser uma estratégia do governo”, comenta.
Acordo de cooperação energética Brasil-Argentina
Em novembro deste ano, o Brasil e a Argentina assinaram um memorando de entendimento sobre a importação e exportação de eletricidade e gás até 2025. O documento foi assinado pelo secretário-executivo do Ministério de Minas e Energia, Hailton Madureira de Almeida, pela secretária de Energia da Argentina, Flavia Royon, e pelo embaixador argentino no Brasil, Daniel Scioli.
Em 2021, a Argentina exportou eletricidade para o Brasil ao custo de 1 bilhão de dólares (mais de R$ 5,3 bilhões), além de 350 milhões de dólares (cerca de R$ 1,8 bilhão) em gás. Em 2022, o Brasil forneceu eletricidade à Argentina no valor de 250 milhões de dólares (mais de R$ 1,3 bilhão). O novo contrato permite a utilização do Sistema Bilateral de Pagamentos em Moedas Locais para saldar as compras de energia.
No marco da assinatura do memorando, o governo argentino informou que estava em negociação com o Brasil para obter financiamento para as próximas etapas da construção do gasoduto. “A integração energética está se tornando uma realidade”, destacou o presidente argentino, Alberto Fernández, após a assinatura do acordo.
Calote de vizinhos
A liberação de recursos do BNDES para obras em outros países, principalmente a governos autoritários, é motivo de críticas no Brasil, devido à inadimplência nos contratos. Durante os mandatos dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Dilma Rousseff (PT), empréstimos concedidos pela instituição brasileira para obras em Cuba e na Venezuela chegaram a R$ 10,9 bilhões.
Os dois países, no entanto, estão sem pagar as prestações do contrato desde 2018. A dívida de Cuba e da Venezuela com o BNDES alcançou, em 2021, R$ 3,5 bilhões. A quantia seria suficiente para construir mais de 850 hospitais no Brasil.
Segundo informações no site do BNDES, Cuba recebeu 656 milhões de dólares (R$ 3,4 bilhões) em desembolsos e mantém um saldo devedor de 447 milhões de dólares (R$ 2,3 bilhões). As prestações em atraso a ser indenizadas são 13 — não foram pagas nem mesmo depois de tentativas de acordo.
Fazem parte dos contratos de financiamento as obras de ampliação e modernização de Porto Mariel (divididos em cinco contratos); a construção de uma planta para a produção de soluções parenterais de grande volume e soluções para hemodiálise; e a modernização e ampliação do Aeroporto Internacional Jose Marti, em Havana.
Para a Venezuela, o desembolso foi de 1,506 bilhão de dólares (R$ 7,8 bilhões) e o saldo devedor é de 235 milhões de dólares (R$ 1,2 bilhão). As prestações em atraso a ser indenizadas pelo FGE (Fundo de Garantia à Exportação) chegam a 42, e as já indenizadas são 510.