A violência contra a mulher deixou, há muito, de ser uma preocupação local para tornar-se uma questão global. Nesse tipo de violência, não há distinção de classe social ou formação cultural, religiosa e educacional, pois afeta a mulher tão somente pela sua condição feminina, configurando-se, inclusive, um problema de saúde pública.
Com o surgimento da Covid-19, para evitar a transmissão da doença e sua proliferação, uma das medidas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) foi o isolamento social. No Brasil, em virtude das restrições determinadas pelas autoridades públicas, é como se tem vivido desde março de 2020. No entanto, o lar, que deveria ser local de proteção e refúgio, passou a ser, em muitos casos, lugar de medo e abuso.
A pandemia não é a causa da violência, mas, sem dúvidas, tem contribuído para seu agravamento. O cenário criado dentro dos lares em razão do isolamento social propicia a eclosão de conflitos e acentua os embates já existentes. De um lado, para as mulheres/vítimas, além do aumento do trabalho doméstico, há o cuidado com crianças, idosos e familiares. E, não bastasse isso, muitas ainda dependem financeiramente de seu parceiro. De outro, para os homens/agressores, o nível de estresse eleva-se em decorrência do medo de adoecer, da insegurança quanto ao futuro, da impossibilidade de convívio social ou, ainda, da iminência de redução de renda ou de desemprego.
A violência instaurada nos lares precede à pandemia, mas se torna agora mais evidente porque as pessoas estão convivendo por mais tempo e com maior intensidade. Entre as várias classificações dos tipos e dos públicos-alvo da violência, quando se trata das mulheres, as mais comuns são as violências física e psicológica. A violência física pode ser percebida com maior nitidez, mas o mesmo não acontece com a violência psicológica, que, não raro, faz da vítima refém dos argumentos de seu ofensor. Há homens que não agridem a mulher fisicamente, mas exercem sobre ela um controle excessivo, uma vigilância, uma exigência comportamental, determinando suas vestimentas, investigando seus contatos e relacionamentos, inclusive conversas no WhatsApp, como se não vivêssemos em pleno século XXI. Esse controle e a pressão exercida causam doença física e mental na mulher, deixando-a psicologicamente abalada. Muitas vezes, as mulheres sequer percebem que estão sofrendo violência psicológica por entenderem que, culturalmente, aquela situação pela qual estão passando é “normal”. O agressor faz a mulher obedecê-lo e insere-a em uma situação de total pressão e submissão. Nesse sentido, como disse Nadine Gasman, porta-voz da ONU Mulheres no Brasil, “A violência contra mulheres é uma construção social, resultado da desigualdade de força nas relações de poder entre homens e mulheres. É criada nas relações sociais e reproduzidas pela sociedade”.
Em tempos de pandemia, os números de violência doméstica cresceram ainda mais, o que é motivo de preocupação para os estados e para o Governo Federal. De acordo com dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), houve um aumento médio de 14,1% no número de denúncias feitas nos primeiros quatro meses de 2020 em relação ao ano passado. No entanto, o mês de maior destaque foi abril, que, comparado ao mesmo mês no ano passado, teve 37,5% de aumento.
Em julho de 2020, os números trazidos pela Nota Técnica do Fórum Brasileiro de Segurança Pública continuam a demonstrar o aumento nos índices de feminicídios e/ou homicídios em diversos estados. Das 27 unidades federativas brasileiras, 12 delas tiveram dados coletados sobre feminicídios, homicídios dolosos, lesão corporal dolosa, estupro e estupro de vulnerável e ameaça.
No que se refere à prática de feminicídios, de acordo com os números apresentados pelo relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ao comparar o período acumulado entre março e maio de 2019 e de 2020, alguns estados lideram o ranking de crescimento de casos: Acre, com um aumento de 400%, de 1 (2019) para 5 (2020) casos; e Mato Grosso, com acréscimo de 157,1%, de 7 (2019) para 18 (2020) casos. Já no Maranhão, o índice foi de 81,8%, de 11 (2019) para 20 (2020) casos. No Pará, o crescimento foi de 75%, de 8 (2019) para 14 (2020) casos. De outro lado, alguns estados apresentaram reduções, como Amapá (100%); Rio de Janeiro (44%) e Espírito Santo (42,9%).
Quanto à prática de homicídios dolosos contra vítimas do sexo feminino, houve um aumento expressivo, atribuindo-se aos seguintes estados os respectivos percentuais: Ceará (208%), Acre (100%) e Rio Grande do Norte (75%) no período compreendido entre março e maio de 2019 e de 2020.
Por outro lado, nos demais tipos de violência, entre os 12 estados mapeados pela Nota Técnica do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os dados indicam uma redução. No período entre março e maio de 2019 e de 2020, o delito de lesão corporal dolosa decorrente de violência doméstica teve queda de 27,2%; os crimes de violência sexual apresentaram redução de 50,5%; e o crime de ameaça teve decréscimo de 32,7%.
No intuito de coibir a violência cometida contra a mulher, em situação doméstica ou familiar, a Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006) descreve medidas protetivas e de urgência a serem solicitadas à autoridade policial pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública e por outros órgãos competentes, sobre as quais o juiz deve manifestar-se, concedendo-as ou não, no prazo de até 48 horas.
No entanto, fato curioso é que, nestes tempos de pandemia, os dados também indicam uma diminuição dos números relacionados à concessão e à implementação de medidas protetivas de urgência, fundamentais para as mulheres. A variação observada aciona um alerta ao Estado e faz surgir a necessidade de apurar se essas mulheres estão sendo impedidas de ter acesso à rede de proteção e aos canais de denúncia.
A violência letal não pode ser ocultada pela sua própria natureza. Contudo, os demais tipos de violência, embora graves, podem ser encobertos, sobretudo nos casos em que as vítimas permanecem com os agressores no mesmo ambiente.
Diante de todo esse cenário e, principalmente, da forma como a violência contra a mulher está disseminada nos diferentes continentes, por semelhança, é possível considerá-la uma pandemia, pois se prolifera como um vírus para o qual ainda não se encontrou a solução definitiva.
Débora Veneral é advogada e diretora da Escola Superior de Gestão Pública, Política, Jurídica e Segurança do Centro Universitário Internacional Uninter.