Apenas em 2020, o Hospital Estadual Materno-Infantil Dr. Jurandir do Nascimento (HMI) realizou 20 abortos permitidos por lei. A unidade de saúde é a única pública de Goiás autorizada a realizar o procedimento.
No total, 203 vítimas de violência sexual do sexo feminino e 43 do sexo masculino foram atendidas no hospital de janeiro e julho deste ano. Entre as mulheres, 37 estavam grávidas e 20 foram liberadas para realizarem abortos. No total, 16 casos envolviam violência sexual e outros 4, má-formação fetal. Por lei, o Brasil permite, desde 1940, interrupção de gravidez em casos de estupro e risco de vida para a gestante.
O assunto veio à tona neste domingo (16) por causa de uma menina de 10 anos que engravidou após 4 anos de estupros cometidos por um tio. O caso registrado no Espírito Santo poderia acontecer e acontece em todo o Brasil. Em Goiás, 1.601 crianças de até 12 anos foram violentadas sexualmente em 2019 e 590 apenas no primeiro semestre de 2020. Isso significa que, no ano passado, 4 crianças sofreram violência sexual por dia. Em 2020, a média é de 2,7 casos.
A menina do Espírito Santo que conseguiu na Justiça o direito de interromper a gravidez, com um processo sigiloso, teve o primeiro nome divulgado pela militante de extrema-direita Sara Fernanda Giromini, conhecida como Sara Winter. Ela também publicou o nome do hospital no qual seria realizado o procedimento e convidou pessoas para se reunirem no local. O resultado foi que na porta da unidade de saúde, em Pernambuco, houve aglomeração de um grupo de religiosos contrário ao aborto, considerado legal. O tio da menina continua foragido.
“Uma exposição deste tamanho agrava ainda mais o processo de violência sofrido e marca socialmente um acontecimento que precisaria ficar no âmbito privado, justamente por sua perversidade”, explica a mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e psicóloga clínica comportamental Laura Oliveira. Ela diz ainda que, por lei, a criança não poderia ser exposta e que os casos seguem em segredo de justiça justamente porque as vítimas não possuem ainda capacidade psicológica e desenvolvimento para lidar com os problemas sociais.
Em todo o Estado, 936 processos tramitam no Tribunal de Justiça do Estado de Goiás envolvendo violência sexual a crianças e adolescentes. Os números são referentes aos sete primeiros meses do ano e a maior quantidade de casos que chegaram ao conhecimento do Poder Judiciário são do mês de julho, 268.
Atendimento 24 horas
Desde 2000, o HMI possui um Ambulatório de Atendimento a Vítimas de Violência Sexual (AAVVS). A unidade de saúde recebe homens e mulheres de qualquer faixa etária. O atendimento é feito 24 horas por dia e o ambulatório dá continuidade todos os dias pela manhã. Não é necessário que tenha sido realizado anteriormente nenhum registro na Polícia Civil. Em 2019, o número total de atendimentos chegou a 378, sendo 53 gestantes, das quais 42 solicitaram aborto legal e 24 foram atendidas na realização da interrupção da gravidez.
A ginecologista e obstetra do Ambulatório Daniella Nasciutti explica que, desde 2005, uma norma técnica do Ministério da Saúde determinou como seria realizado o procedimento do aborto legal na unidade. A médica pontua que os pedidos seguem um protocolo e que é respeitada a vontade da gestante, mas que também há um atendimento ginecológico e psicológico. Em casos de aborto solicitados e recusados, geralmente são quando a idade gestacional não é compatível com a data da agressão, ou seja, o feto não é fruto de violência sexual ou quando a gravidez está acima de 22 semanas gestacionais.
“Eu acho que deste caso da menina do Espírito Santo, o que tinha que ficar e precisa prevalecer é a vontade dela, a autonomia e o respeito que ela merece. Mesmo que ela decidisse por doar a criança, essa história não terminaria no parto”, pontua a médica do HMI.
A opinião é compartilhada pela psicóloga Laura Oliveira. Ela defende que uma criança de 10 anos não possui maturidade emocional para assumir o compromisso do parto. “O parto é a via de um compromisso eterno. A violência que essa criança sofreu por anos se encerra com o fim da gestação e abre espaço para o processo de reconstrução, lenta, da vida, da infância, da confiança e do amor. O abuso é uma cicatriz eterna. Cada um, ao tocar uma cicatriz, a sente de uma forma, mas ela estará sempre ali. Quando é fruto do ambiente familiar é ainda mais traumático e doloroso por vir justamente do ambiente que deveria proporcionar amor e proteção incondicional. Toda a base de segurança da vida fica abalada. Toda a representação de amor fica abalada. É necessário um longo processo de reconstrução”, finaliza Laura.
Facebook tem de apagar postagens
Nesta segunda-feira (17), a Justiça do Espírito Santo determinou que Twitter, Facebook e Youtube retirassem do ar as publicações que continham informações sobre a menina que engravidou do tio após os estupros. A determinação atendeu ao pedido de uma ação civil pública que foi protocolada pela Defensoria Pública do Espírito Santo e o prazo era de 24 horas para a retirada.
O advogado criminal Pedro Paulo de Medeiros explica também que violar sigilo médico e processual gera responsabilidades administrativa, civil e penal. “Sendo a vítima uma criança, deverá o Ministério Público ou delegado de Polícia investigar a fonte do vazamento e processar criminalmente os autores. O Ministério Público deverá ainda propor ação civil por ato de improbidade (se quem violou o sigilo era vinculado a alguma função pública) e de reparação de dano (indenização), caso se prove que houve o vazamento intencional”, completa.
O advogado diz, por fim, que os órgãos de classe (Conselhos Regionais de cada profissão) deverão apurar a conduta desse profissional que porventura tenha vazado a informação sigilosa.
SUS deve fazer procedimento
O artigo 128, II do Código Penal legaliza o aborto em casos de estupro pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Ainda assim, a advogada e integrante do Coletivo Feminista Pagu, da UFG, Camila Borges, de 25 anos, explica que, na prática, o acesso ao procedimento é complicado seja por acesso a equipe multiprofissional capacitada seja pelo medo do estigma que a mulher carrega ao realizar o procedimento. Pontua ainda que a dificuldade ficou clara quando a menina de 10 anos precisou ir a outro Estado para realizar o aborto.
“Por mais que o aborto legal esteja assegurado em casos de estupro, ainda há quem questione esse direito. O corpo da mulher está sob constante vigilância e o direito a escolha é tolhido em detrimento da “vida” que os fundamentalistas tanto insistem em defender, esquecendo que a vida e o futuro que estão em jogo são os da mulher. A menina de 10 anos foi duplamente violentada e violada, primeiro por seu tio, depois pela sociedade que insiste em tratar o assunto aborto como tabu e coloca pretensões religiosas, que são de ordem moral e individual, acima da lei e do direito de escolha”, completa a advogada.
40 jovens se tornam mães por dia em Goiás
Todos os dias, cerca de 40 meninas com idades entre 10 a 19 anos se tornam mães em Goiás. O número anual ultrapassa 15 mil e representa 15% do total de partos realizados no Estado. Apenas em Goiânia, a média de 2017 – último ano cujos dados estão disponíveis pelo Ministério da Saúde – é de seis por dia e mais de 2 mil nos 12 meses. Os índices, claro, são rehexo do nacional: o Brasil possui a maior taxa de mães adolescentes da América Latina, com 68,4 nascimentos para cada mil adolescentes mulheres.
Apesar de a Região Centro-Oeste ter o menor número absoluto de partos com mães entre 10 e 19 anos do País em 2017 (36.090), perde apenas para Norte e Nordeste quando o porcentual é calculado proporcionalmente ao número de nascidos vivos. No ranking estadual, Goiás ocupa o 12º lugar em números absolutos tanto para a faixa etária de 10 a 14 anos (597) quanto para 15 a 19 (14.413).