Uma bebê indígena da etnia Kamaiurá que nasceu com uma malformação chamada encefalocele – quando parte cérebro fica em uma espécie de ‘bolsa’ para fora do crânio – está sob a guarda de uma assistente social, em Cuiabá, após decisão da Justiça. A menina, de 10 meses, foi rejeitada pelos pais devido à deficiência que possui e corre risco de ser sacrificada, caso volte para a aldeia.
Na decisão do dia 17 de junho, a juíza Gleide Bispo dos Santos determinou que a Fundação Nacional do Índio (Funai) se manifeste sobre a decisão em até 15 dias.
O G1 entrou em contato com a instituição, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria.
A assistente social, de 53 anos, acompanha os pais biológicos desde o nascimento da bebê. À época, ela e a equipe de saúde convenceram o casal a levar a filha para Cuiabá para realizar uma cirurgia na cabeça.
Mesmo após o procedimento cirúrgico, a menina tem sinais de deformidades no rosto. Com isso, a mãe declarou renúncia em criar a menina. Já o pai, devido ao trabalho que teria, rotineiramente, de consultas neurológicas e tratamento especializado, também disse que não quer a guarda.
Durante o processo judicial, os pais afirmaram que uma tia, possivelmente, aceitaria criar a criança, no entanto, a juíza cita que a cultura dos povos Kamayurá – onde o infanticídio indígena é eticamente aceito pelo grupo – fizeram a assistente social e outros integrantes da equipe de saúde envolvidos no caso concluir pela situação de perigo para a criança, caso retornasse à comunidade.
O risco, conforme consta no processo, é de rejeição e, consequentemente, sacrifício.
Por causa do apego à criança e por ter se aproximado e ganhado a confiança dos pais, a assistente social se colocou à disposição para cuidar da menina.
Em junho, os pais biológicos da bebê assinaram uma declaração de renúncia quanto à guarda e poder da família sobre a criança. Desde então, a bebê está sob os cuidados da profissional de saúde e da família dela.
Caso a menina se adapte com a nova família e receba todos os cuidados necessários, a Justiça poderá conceder a guarda definitiva para a assistente social.
‘Criança satisfeita, observadora e afetuosa’
A menina e a nova família dela passaram por exame psicossocial para avaliar as condições psicológicas, na última terça-feira (29).
De acordo com a psicóloga responsável pelo acompanhamento, a bebê indígena tem demonstrado ser uma “criança satisfeita, observadora e afetuosa, aspectos típicos de quem tem suas necessidades atendidas adequadamente”.
Conforme a avaliação médica, a assistente social e a família dela demonstraram muito apego à menina, com sinais de afeto, atenção e cuidados necessários para o desenvolvimento da criança.
“Na oportunidade da entrevista, observou-se que, mesmo sem um projeto inicial da guarda, ela vem desempenhando seu papel de guardiã, satisfatoriamente, motivada e construindo ao longo desse mês expectativas positivas com relação ao processo”, diz no relatório.
A psicóloga disse ainda que a assistente social disse que tem interesse em compartilhar o sobrenome dela com a bebê para que a menina passe a ser, de fato, membro da família.
Ainda na semana passada, uma equipe do serviço social visitou a casa da família para avaliar as condições sociais. Na conclusão, a equipe disse que a assistente social “tem acomodações suficientes para acolher a criança”.
Infanticídio indígena
A Constituição Federal assegura aos indígenas o direito à prática do infanticídio – o assassinato de bebês que nascem com algum problema grave de saúde.
Para os índios, isso é uma forma de proteger o recém-nascido. No entanto, há um Projeto de Lei da Câmara (PLC – 119/2015) que busca evitar a morte de crianças indígenas por práticas tradicionais das tribos.
Em 2015, a proposta foi aprovada na Câmara dos Deputados, mas ainda não foi votada no Senado. Em fevereiro deste ano, o Senado afirmou que essa é uma das matérias que presidente Jair Bolsonaro quer ver aprovadas pelo Congresso Nacional em 2021.
O texto diz que os órgãos responsáveis pela política indigenista deverão “usar todos os meios disponíveis” para a proteção das crianças, adolescentes, mulheres, pessoas com deficiência e idosos indígenas, de práticas que atentem contra a vida, saúde a integridade física, como:
- infanticídio ou homicídio
- abuso sexual ou estupro individual ou coletivo
- escravidão
- tortura em todas as suas formas
- abandono de vulneráveis
- violência doméstica
A proposta altera o Estatuto do Índio (Lei 6.001, de 1973) para “garantir o direito à vida, à saúde e à integridade física” de crianças, adolescentes, mulheres, pessoas com deficiência e idosos indígenas.
Aumento na mortalidade
O último relatório divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), em 2020, com base em dados de 2019, aponta que houve um aumento nos registros de mortalidade de crianças indígenas de 0 a 5 anos.
Em todo o Brasil as mortes saltaram de 591, em 2018, para 825 em 2019.
De acordo com o Conselho, Mato Grosso está entre os três estados com os maiores registros. Foram 100 casos notificados no estado, 133 em Roraima e 248 no Amazonas.
Conforme o estado, “os dados oficiais não permitem uma análise mais aprofundada” porque não apresentam “informações detalhadas sobre a faixa etária das vítimas”.
No entanto, segundo o Cimi, as mortes sempre estão relacionadas preconceito, intolerância, disputa pela demarcação de territórios, combate à exploração madeireira e garimpeira, entre outros.
Por Kessillen Lopes e Suelen Alencar, G1 MT e TV Centro América