No dia 16 de agosto de 2020, uma semana após o aniversário de 25 anos do episódio conhecido como Massacre de Corumbiara, cerca de uma centena e meia de camponeses invadiu parte da Fazenda Nossa Senhora Aparecida, em Chupinguaia (RO), sul do estado. A propriedade compunha a antiga Fazenda Santa Elina, onde 12 pessoas, incluindo uma criança, morreram em um conflito entre policiais e posseiros, em 1995.
A entrada na área foi organizada pela Liga dos Camponeses Pobres (LCP), formada, em parte, por remanescentes do conflito da década de 1990. Eles ocuparam, segundo a Polícia Militar (PM), a área de reserva legal da fazenda, que tem um total de 3,4 mil hectares.
Com a invasão, ocorrências policiais foram registradas e um processo foi iniciado na Justiça Estadual para a reintegração de posse, com duas decisões favoráveis à proprietária da fazenda, a Agropecuária Cabixi.
A empresa aponta que os funcionários são ameaçados por atos de “terrorismo” cometidos pelos membros da LCP, como a queima de fogos de artifício para intimidação, destruição de porteiras, currais, pichações e até incêndios nas construções da fazenda.
Desde o fim de março passado, após a segunda decisão determinando a reintegração, o Governo do Estado mobilizou forças policias na região com o objetivo de cumprir a ordem judicial. Os agentes enfrentam resistência dos camponeses para saída voluntária da fazenda.
Fazenda Nossa Senhora Aparecida (antiga Santa Elina)
A Fazenda Nossa Senhora Aparecida, em Chupinguaia, é uma das três fazendas que surgiram da divisão das terras da Fazenda Santa Elina, onde ocorreu o Massacre de Corumbiara. Por esse motivo, a área é uma espécie de símbolo da luta dos camponeses pela terra.
Um panfleto atribuído à LCP juntado ao pedido de reintegração de posse, convidava moradores das cidades do Cone Sul para a chamada “revolução agrária”, com o argumento de que a terra é grilada e os títulos são falsos. O objetivo era ocupar a parte que falta da antiga Santa Elina, como forma de “fazer justiça pelo sangue dos camponeses que foi derramado”
“A Fazenda Nossa Senhora agora é do povo e em breve será cortada e dividida! Você companheira e companheiro, que foi vítima do massacre de Santa Elina, você que é parente de uma daquelas vítimas, venha para a Nossa Senhora: ela também é sua e agora se chama Área Revolucionária Manoel Ribeiro”, diz o convite.
Equipes da PM foram até a fazenda na semana da invasão e constataram a presença dos integrantes da LCP. Conforme relatório da corporação, eles portavam foices, facões e machados, soltavam fogos de artifício e gritavam “nem que a coisa engrossa, essa terra é nossa”. Diante da reatividade do grupo, os militares recuaram.
Processo de reintegração
Dias após a invasão da fazenda, em 27 de agosto, a Agropecuária Cabixi protocolou na Justiça o pedido de liminar para manutenção/reintegração de posse da área.
A liminar foi concedida em 11 de setembro pelo juiz Muhammad Hijazi Zaglout, que determinou a notificação dos invasores para desocupação do imóvel em 48 horas.
A determinação era que o mandado fosse “cumprido com urgência e toda a cautela, de modo a preservar a integridade física e moral, bem como bens materiais dos envolvidos, sejam eles o autor, o réu e os executores da ordem. […] observando-se as cautelas para evitar eventual confronto armado, inclusive sugerido o competente estudo prévio da área e formas de execução da medida por parte da PM”.
Ainda no mês de setembro, a promotora Yara Travalon Viscardi, da 2ª Promotoria de Justiça de Vilhena, pediu que a questão fosse reconhecida como conflito fundiário, com encaminhamento dos autos à vara especializada em Porto Velho, e teve o pedido acatado.
Com a possibilidade de remessa do processo para a unidade de Porto Velho, o juiz Muhammad Hijazi optou por suspender a liminar que determinava a reintegração. Pela complexidade da operação, a ordem ainda não havia sido comprida em 28 de setembro.
A Agropecuária Cabixi se manifestou no processo de que não cabe a reivindicação de reforma agrária na propriedade porque a fazenda é altamente produtiva com criação e engorda de bovinos (4 mil cabeças) e agricultura mecanizada (soja e “safrinhas”).
A Constituição Federal prevê a desapropriação pela União de imóveis rurais que não estejam cumprindo a função social, sendo insuscetível de desapropriação a propriedade produtiva.
Em 18 de janeiro, equipes da Polícia Militar foram até a Nossa Senhora após a denúncia de que os invasores haviam avançado para a área de produção da fazenda. No local, os PMs avistaram um grupo com 10 pessoas, trajadas de vermelho, com capuz e bandeiras da liga, segundo a ocorrência registrada pelos militares.
A PM descreveu que eles entoavam dizeres e cantos hostis e se escondiam em trincheiras e barricadas, além de lançar coquetéis molotov e fogos de artifício em direção às guarnições. Diante do avanço dos policiais, o grupo se escondeu na área de reserva. Para trás, o grupo deixou pichações pedindo “morte ao latifúndio”.
Desde a suspensão da liminar de reintegração, os advogados da Fazenda protocolaram diversos pedidos para o retorno e cumprimento da decisão. Em 23 de março o argumento levantado foi o incêndio do curral. O ato ganhou repercussão na mídia, mobilizou pecuaristas da região e levou o governo do estado a se manifestar na semana seguinte.
No outro dia, a PM registrou um incêndio que destruiu duas casas e um alojamento da propriedade. Uma torre com duas placas solares e o sistema de monitoramento também foram danificados. De acordo com o documento, testemunhas contaram que cerca de 40 pessoas chegaram no local “com tochas de fogo, lanterna, bandeiras, fogos de artifício, gritando palavras de ordem, de forma a intimidar as famílias e funcionários que saíram de suas casas correndo apavoradas sem ter tempo de retirar seus pertences”.
Violência cruzada
Se por um lado os invasores são apontados como um grupo que usa de violência e até táticas de guerrilha para alcançar a chamada “revolução agrária”, por outro, há denúncias de formação de milícias no campo para “proteção” da fazenda Nossa Senhora.
No dia 15 de março, o Ministério Público apresentou um pedido de busca e apreensão contra quatro policiais militares e outros dois homens pela suspeita de envolvimento com pistolagem (segurança privada contratada ilegalmente).
Conforme o MP, um dos sócios da fazenda contratou um sargento da PM para fazer segurança do imóvel. Esse sargento ficou responsável por recrutar outros três policiais para o trabalho, com uma diária de R$ 900. Os demais contratados eram um frequentador de clube de tiro e um homem conhecido pela venda ilegal de armas e munições.
O MP diz que podem ter sido cometidos crimes de constrangimento ilegal, porte ilegal de arma de fogo e disparo, ameaça e associação criminosa, além de improbidade administrativa. Os invasores foram convidados pelo MP para uma reunião onde poderiam ser feitas denúncias, mas ninguém compareceu.
Os suspeitos foram presos em flagrante no cumprimento da busca e apreensão. Todos tiveram a prisão convertida em preventiva pela Justiça no dia 23 de março.
Reintegração frustrada
Em 29 de março, pouco após o governador Marcos Rocha conceder uma entrevista coletiva sobre as medidas tomadas na região, o juiz Roberto Gil de Oliveira determinou novamente o reintegração de posse na área no prazo de três meses, concedendo até 29 de junho para saída voluntária dos invasores.
O magistrado destacou que “os movimentos sociais têm liberdade constitucional para manifestar, protestar e agir de maneira lícita e pacífica, desde que respeitado o direito de outrem. A invasão de propriedade pública ou privada marcada pelo emprego da força, atenta flagrantemente contra o Estado Democrático de Direito”.
Apesar do reinício da operação Paz no Campo, com envio de tropa para a localidade, segundo integrantes da ação, há grande resistência de contato para negociação por parte dos camponeses, inclusive com disparo de fogos de artifício contra o helicóptero da Secretaria de Segurança e bloqueio de vias de acesso.
Relatórios da PM apontam que “é praticamente impossível ir ao encontro de tal grupo [LCP] sem que haja extremo risco de confronto armado”, o que torna ainda mais difícil uma solução para o conflito.
Em uma tentativa de negociação na semana passada, a polícia jogou cerca de mil panfletos sobre o acampamento Manoel Ribeiro com a data e local para uma reunião onde seria discutido o cumprimento da reintegração, mas nenhum representante apareceu.
No dia 7 de abril, uma nova tentativa: os oficiais de Justiça e PMs foram até uma estrada a 400 metros da entrada do acampamento e, usando megafone, chamaram os representantes do local para uma conversa.
Em seguida, quatro ocupantes do movimento apareceram encapuzados e portando objetos não identificados. Eles queriam que os oficiais de Justiça fossem ao encontro deles desacompanhados dos policiais, o que não foi atendido por questão de segurança, segundo a Justiça.
O juiz da 2ª Unidade de Conflitos agrários esclareceu no dia 6 de abril, após manifestação da Defensoria Pública e da defesa de uma camponesa, que os invasores devem ser intimados para deixar o local até o fim de junho, mas a PM e agentes políticos poderiam “tentar uma desocupação negociada”.
Diante de um relatório da PM com a descrição da situação na fazenda, o juiz Roberto Gil de Oliveira suspendeu, na segunda-feira (12), por tempo indeterminado, a decisão que deu até o meio do ano para saída voluntária dos camponeses.
Na terça-feira (13), o magistrado também indicou ao governador Marcos Rocha que solicite a força Nacional de Segurança Pública para manter a ordem na região, mas sem atribuição de negociações.
A Superintendência do Incra em Rondônia informou que por causa da pandemia não tem condições de fazer levantamento técnicos sobre perspectivas de criação e planejamento de assentamentos no estado.
O G1 tentou contato com o Governo de Rondônia, PM e advogados que representam a fazenda e a LCP, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
Por G1 RO — Porto Velho